O fantasma do crescente endividamento do consumidor

Ricardo Loureiro (*)

Ricardo Loureiro (*)

O crédito é uma importante variável econômica, que promove a expansão da atividade, amplia o poder de compra dos consumidores e multiplica as transações.
Ainda que seja uma experiência recente no país, de menos de duas décadas, o crédito de massa já transformou a economia e a vida do brasileiros. Os ganhos socioeconômicos são indiscutíveis e tornam o mercado consumidor um dos mais atraentes do planeta.

Com uma espetacular perspectiva de crescimento, dada a baixa relação crédito/PIB, de 46,7%, esta é a hora do Brasil discutir o atual formato de seu sistema de crédito e os impactos sobre o endividamento do consumidor, que evolui aceleradamente.

O país não dispõe de mecanismos para evitar o superendividamento do consumidor e isto é uma vulnerabilidade. Como não se sabe quem está com dívidas acima de sua capacidade de pagamento e se desconhece o histórico de crédito, há uma zona cinzenta entre quem é bom ou mau pagador. Hoje, o superendividamento ocorre de forma individualizada no Brasil, mas determina impactos no coletivo. O prejuízo com os maus pagadores é distribuído por todos os consumidores, por meio do custo elevado do crédito, penalizando a grande maioria que, de fato, paga bem.

Vários países passaram por problemas de superendividamento de sua população, alguns com crise e outros não, mas todos encontraram uma única saída para isto.

Por exemplo, na Coréia do Sul, em 1997, a Crise da Ásia, que quebrou boa parte do sistema financeiro da região, pegou as famílias altamente endividadas. Sem  crédito bancário, as famílias passaram a usar seus cartões de crédito para pagamentos. De 1999 a 2002, o número de cartões mais que dobrou e atingiu a marca de 100 milhões para uma população de 46 milhões. Para se ter uma idéia da situação, o saldo utilizado no cheque especial e no cartão de crédito bateu os 114% do PIB. O endividamento das famílias passou para 96% da renda disponível. Sentindo o risco iminente, entre 2003 e 2004, os governantes passaram a impor limites nesta modalidade, aumentando a inadimplência das famílias, que chegou a 10,5%, e mais insolvência para o sistema financeiro. Para evitar o que poderia ainda ser pior, no segundo semestre de 2004, o cadastro positivo  entrou em operação, para melhorar e aperfeiçoar o sistema e os relatórios de crédito. No final daquele mesmo ano, a inadimplência caiu para 5,5% e em 2005 para 3,2%. Hoje, a inadimplência das famílias está em 1,1% e a Coréia do Sul tem um sólido ambiente de crédito.

Hong Kong é outro destaque na reversão do crescimento acelerado do  superendividamento. Em 2002, após um longo ciclo de crescimento econômico, acompanhado por uma firme expansão do crédito, a relação endividamento familiar e renda disponível bateu os 140%. Lá existe o instrumento de falência pessoal, que atende aqueles casos em que o consumidor não tem ativos para pagar as diversas dívidas assumidas. As falências pessoais decretadas atingiram o recorde de 25.328 registros. Havia em Hong Kong uma situação desconfortável, com cidadãos quebrados e instituições com rentabilidade em queda e indo para na mesma direção. Vale lembrar que tanto neste território chinês quanto nos Estados Unidos e em outros países, o consumidor que fica insolvente e entra em falência passa por várias restrições. Em Honk Kong, seu ativo é distribuído entre os credores. Nos Estados Unidos, fica sem acesso ao crédito por uma década.

Hong Kong implantou seu cadastro positivo em junho de 2003 e, desde então, tem promovido o compartilhamento das informações positivas de crédito do consumidor. Como resultado, já em 2004, a insolvência pessoal tinha caído para 12.150 casos. O período de transição para o novo sistema de crédito durou dois anos, com o objetivo de criar uma firme cultura do cadastro positivo. Em 2008, os registros de falências pessoais estavam em 10.779 e, em 2009, com o impacto da crise financeira global foram a 16.157 e devem voltar para o patamar abaixo de 8 mil ocorrências nos próximos dois anos. A população deste território e a economia local estão livres dos problemas do superendividamento.

Hoje no Brasil, o envidamento da população em comparação à renda é de 39,1%, de acordo com o Banco Central. É um número que não preocupa no momento, porque a renda e o emprego também estão em alta. Mas, vale a reflexão sobre os fatos.

A lição que fica da Coréia do Sul e de Hong Kong e mais outros países como a Tailândia e a África do Sul, é que não se deve esperar a deterioração do endividamento para se implantar um moderno e eficiente sistema de crédito. Vários países, de forma oposta, implantaram o cadastro positivo sem passar pelo cenário crítico de uma crise de endividamento do consumidor, como Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Croácia, Irlanda, República Tcheca, Turquia, Hungria, Marrocos, Arábia Saudita e muitos outros.

Este é um dos desafios que se apresenta à economia brasileira: ter um sistema avançado de avaliação do risco de crédito, o cadastro positivo, que garante qualidade ao crédito. Com ele é possível gerenciar os efeitos colaterais do endividamento – elevação do spread, dos juros e a restrição do crédito.

Para que o endividamento do brasileiro se torne sustentável é necessário que a atual metodologia de avaliação do risco seja revista, pois é uma prática ultrapassada e ineficiente no que se propõe. Caso contrário, continuaremos tendo no endividamento da população um grande e ameaçador fantasma.

(*) Ricardo Loureiro é presidente da Serasa Experian e da Experian América Latina.

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